29 de janeiro de 2016

O multiculturalismo, as suas manifestações e decorrências.


    Fomos, enquanto europeus, partilhando uma matriz cultural comum, surpreendidos com as notícias que nos chegaram de Itália. As autoridades italianas, num assomo servilista, resolveram cobrir algumas estátuas que pudessem ser consideradas chocantes ou ofensivas ao líder iraniano, o seu Presidente, Hassan Rouhani, numa visita que efectuou a Roma por forma a se encontrar com o Primeiro-Ministro italiano.

    A atitude provocou reacções diversas. Itália é uma referência, território de onde emergiu um dos maiores impérios que a humanidade conheceu, que se espalhou pela Europa, pelo Médio Oriente e pelo norte de África, propagando a sua hegemonia cultural e linguística, da qual somos herdeiros. A sua arte, pelos séculos, inspirou artistas oriundos de toda parte. No Renascimento, assistimos a uma recuperação do legado latino que se havia perdido. Actualmente, pela arquitectura, pela literatura, pela filosofia, pela política, pela escultura, pela música, designadamente, encontramos expressões do espólio romano, primeiramente, e das inúmeras realidades políticas que dominaram o território que hoje compreende a Itália, unificada no século XIX.

      Com efeito, a Europa demonstra a sua tolerância, a sua capacidade quase inumana de ceder. Impelidos por uma necessidade de redenção dos pecados de um passado não tão longínquo assim, a tudo somos complacentes, permissivos.
      Há, porém, um factor que explicará melhor esta opção das autoridades italianas: os negócios de somas avultadas, de milhões de euros, que estiveram subjacentes à visita do Presidente do Irão. Após o levantamento das sanções económicas impostas ao país islâmico, pela ONU, alguns Estados europeus apressaram-se a procurar vantagens para as suas empresas.


      Adversamente, os fluxos de refugiados do Médio Oriente confirmam o interesse que o Velho Continente continua a suscitar nas populações. Os casos que nos chegam através dos media relançam o debate em torno da convivência pacífica de culturas tão distintas entre si. Os movimentos de extrema-direita agudizam-se, recrudescem o seu discurso odioso, incentivando à revolta. A Dinamarca, insuspeita de ser um Estado intolerante, aprovou um pacote legislativo que contempla o confisco de bens dos refugiados, medida que está a ser severamente criticada pelos seus parceiros europeus, onde Portugal se inclui. Mais a norte, a Suécia prepara uma expulsão massiva de refugiados, como natural consequência da rejeição dos pedidos de asilo.

       Bem como salientei há meses, os países europeus desvalorizaram o impacto que teria, nos respectivos tecidos sociais e económicos, a chegada de milhares de pessoas em vagas descontroladas. Aos tradicionais discursos de boa-vontade e de hospitalidade, seguiu-se o confronto com a nossa incapacidade de integrar costumes e comportamentos tão próprios, embora nos comprometêssemos em respeitá-los.
      Na generalidade dos Estados islâmicos, não há leis que protejam, com eficácia, as singularidades religiosas e culturais das minorias. Desconhece-se a separação do Islão do Estado. Direito e Corão misturam-se. Naturalmente, as pessoas que provêm desses países não compreendem o caminho que trilhámos e que culminou na tolerância e na demarcação bem clara do papel que a religião deve assumir na sociedade. Os conflitos são, nesse sentido, uma inevitabilidade.

         Mantemo-nos politicamente correctos, flexíveis, transigentes. Não exigimos reciprocidade. 
       Confundimos respeito com subserviência, cordialidade com submissão. Trocamos valores por dinheiro.
         Estamos sem rumo, e perdemos progressivamente o controlo das nossas acções.

26 comentários:

  1. Estes dias de hoje estão conturbados mesmo e de difícil entendimento.

    Muito bom isto: "Mantemo-nos politicamente corretos, flexíveis, transigentes. Não exigimos reciprocidade.
    Confundimos respeito com subserviência, cordialidade com submissão. Trocamos valores por dinheiro.
    Estamos sem rumo, e perdemos progressivamente o controlo das nossas ações.". Perfeito

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    1. É difícil, senão impossível, conciliar tantas diferenças.

      Não receio pôr os "pontos nos is". E sinto que há quem tema expor o que pensa quanto a esta matéria.

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  2. Vamos ver onde nos levará este "baixar de calças", a Europa do Norte já se apercebeu o que vale este povo que morre pelo seu Deus... Querem ser muçulmanos vão para o Médio Oriente, lá estão os petrodolares não entendo

    Grande abraço amigo

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    1. O Deus é o mesmo. Nós já morremos e matámos por Ele. Por aqueles lados, ainda estão nessa fase hedionda e obscura...

      Também me enfada toda esta subserviência desmedida. Não temos de esconder os nossos valores, expressos na nossa cultura, envergonhando-nos do que somos. Além de que um nu artístico é tão inócuo que me leva a considerar isto tudo um disparate. Provavelmente, fomos nós, europeus, que criámos esta celeuma. O líder iraniano via as estátuas e pronto. Acredito que nada dissesse.

      um abraço, amigo.

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  3. Uma vergonha para Itália e para o mundo ocidental. Falou bem. Reciprocidade. Abrimos mesquitas enquanto eles matam cristãos. Se o presidente do Irão vinha a Itália, recebiam-no normalmente. Sinto-me revoltado com tanta estupidez.
    Nem mais um refugiado. Bem vejo o que eles fazem na Alemanha e por essa Europa. Violam as mulheres, tratam mal as pessoas, reúnem-se em guetos. Rua com eles. Os que querem cá viver, vivem segundo as nossas regras e a nossa religião. E nunca chegaríamos a sujeitá-los ao que eles nos sujeitam lá.

    Cumprimentos.

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    1. Eu não seria extremista a esse ponto, reconhecendo, porém, que sim, há uma manifesta desproporcionalidade.

      Por eles não agirem correctamente connosco, não devemos pagar na mesma moeda. Nunca defendi a Lei de Talião. Se conquistámos a tolerãncia, temos de manifestá-la nas relações com todos os povos. Eles, bom, que reconheçam os seus erros e os corrijam. Isso não é connosco. Lá chegarão.

      Cumprimentos.

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  4. O problema não é o líder Iraniano, mas as autoridades italianas que se envergonham com o nu artístico, ou supuseram que o líder iraniano se chocaria com tais estátuas. É espantoso como um país berço de progressismo ser hoje um dos mais conservadores da Europa e não digo somente por essa atitude, mas pelo conservadorismo arraigado na sociedade italiana atual, fruto da influência que a igreja católica ainda exerce sobre a sociedade e que se reflete na política. A influência que a religião exerce na política da Itália vai de encontro em alguns pontos com influência que a religião exerce na política no Iram.
    O Iram apesar de ser uma democracia marcada pela forte presença da religião é de longe um dos piores Estados de maioria muçulmana, quando comparado aos demais. A liberdade de crenças por lá existe e minorias religiosas convivem sobre o mesmo território, inclusos judeus. Há deputados judeus no parlamento iraniano. A propaganda anti-irã veiculada no mundo ocidental tem um viés muito claro de tornar o Iram o país mais atroz do mundo aos olhos de milhares ocidentais devido a seu programa nuclear. Os países islâmicos não são todos iguais.
    Não vejo notícias da mídia ocidental condenando as condutas atrozes da Arábia Saudita.

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    1. No comentário ao Francisco, eu faço referência à conduta desnecessária das autoridades italianas. No meu entender, foram elas as culpadas deste aparato mediático.

      Sem dúvida. Itália é um dos países mais conservadores da Europa, fruto da proximidade com o Vaticano (que, de facto, se encontra dentro de Roma...).

      Só conheço um país de maioria islâmica que é laico: a Turquia. Minorias religiosas há em quase todos os países de maioria islâmica. O Egipto tem uma minoria cristã; o Iraque também, e por aí fora. Todavia, a tolerância que cada um desses Estados tem para com as suas minorias religiosas é bastante diferente.

      O Irão, na realidade, é uma teocracia. Não há qualquer democracia por lá. Uma democracia pressupõe a participação plural, livre e esclarecida de todos os cidadãos. Tal não existe por lá. É um Estado islâmico, de maioria xiita. Há um certo reconhecimento de minorias religiosas, mas não sei até que ponto coexistem sem atritos.

      Não sofri a influência de qualquer propaganda anti-Irão. Não é país com o qual simpatize, assumo, bem como não me é eticamente possível simpatizar com países cuja religião e o Estado se confundem.

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    2. p.s.: A protecção de cada Estado às suas minorias religiosas não pode apenas ser medida pelo que consta nas Leis Fundamentais e nos diplomas avulsos. Muitos regimes atrozes e repressivos existem sob o manto de Constituições plurais, assentes no respeito pelos direitos humanos.

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  5. há muitos dias que não vejo notícias, estou tão desligada que nem segui os debates na tv, daí não ter comentado nada.
    uma vergonha, como já se comentou. resumindo, os negócios falam mais alto que a história de um povo. e quando o petróleo mover os países, teremos comportamentos semelhantes...
    bjs.

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    1. Parece que o petróleo lhes corre nas veias. O petróleo e os euros.

      Que tirem o vinho (seria desrespeitoso oferecer bebidas alcoólicas a um islâmico, todos o sabemos; só a incúria o justificaria), mas não escondam os seus valores, a sua cultura. Sendo uma mulher desnuda o símbolo da República, espero que os franceses não a tenham coberto!...

      um beijinho.

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  6. Não é preciso muito para sabermos dignificarmo-nos! Basta fazer como Hollande que recusou o jantar oficial sem bebidas alcoólicas e, por isso, a recepção foi anulada. De qualquer forma, gostei muito do teu texto...

    Hugs

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    1. Sim. Bom, eu compreendo o vinho. Oferecer vinho a um muçulmano é, efectivamente, uma falta de bom senso. Já diz mais respeito ao outro do que a nós. Esconder a nossa cultura é que me parece um absurdo.

      Obrigado, Daniel. :)

      um abraço.

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  7. Em suma, somos umas putas, capazes de tudo por dinheiro em troca.

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  8. "Trocamos valores por dinheiro" - é a mais pura das verdades.
    Pergunto-me se não tivessem levantado as ditas sanções, se os italianos teriam sido tão subservientes? ;P

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    1. Não, até porque não haveria negociações. O Irão estava sujeito a sanções económicas por parte das Nações Unidas.

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  9. Achei a atitude italiana lamentável, mas a verdade é tal e qual como a descreves. Ou seja, tudo se vende, tudo se compra, e no negócio tudo se faz, mesmo que isso signifique demitir-nos dos nossos valores. Sobre a questão dos refugiados, e mais especificamente o Islão, talvez a solução esteja na criação de uma corrente menos dura, menos cruel, quase uma contra-religião apoiada pelo mundo ocidental.

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    1. É... os italianos não estiveram muito bem. Sendo Itália o que é para o ocidente, creio que todos nos sentimos incomodados.

      Era inevitável o surgimento de uma corrente mais extremista, mais radical, diabolizando os refugiados. Só lamento pelas famílias pacíficas que por cá estão, tentando, no respeito pelos nossos valores, reconstruir as suas vidas. Há tanta propaganda num e noutro sentido que, às tantas, ficas num vácuo de posição / opinião.

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    2. Infelizmente nesta guerra de argumentos e informação, quem "paga" é quem menos merece...

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    3. Como sempre. Já diz o povo: «Paga o justo pelo pecador».

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  10. Este comentário foi removido pelo autor.

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    1. Olá, Tiago.

      Obrigado pela sua participação.

      Concordo com o seu comentário. A Europa abriu as suas portas a pessoas de variadas procedências, com costumes díspares. Como referi, os países originários dessas comunidades não são democracias, não respeitam os direitos humanos. A maior parte dessas pessoas não sabe o que é viver numa sociedade plural, diversificada. Têm o seu ideal de sociedade, justamente aquela em que nasceram e viveram, em que não há respeito algum por minorias religiosas, políticas, sexuais. E é uma falácia pensar-se que o Irão é diferente. Não é. Pode consagrar alguns direitos, pode reconhecer algumas minorias, acredito que sim, mas o único país que talvez mais se aproxime da nossa tolerância ocidental, de maioria islâmica, é a Turquia - que é, como sabemos, um Estado laico. Talvez pela sua proximidade à cultura ocidental.

      Inevitavelmente, essas pessoas ficam excluídas, marginalizadas. Não se adaptam aos nossos costumes, às nossas tradições. Congregam-se nos bairros problemáticos. Pior do que isso, afrontam as nossas liberdades. É bom que não tenhamos medo de o dizer, de nos opor. Eu sou tolerante, eu sempre defendi que a Europa tinha um certo dever de acolher essas pessoas; não posso, contudo, permitir que ponham em causa as nossas liberdades, o nosso Estado de Direito Democrático.

      Sim, é o risco que se corre. Se adoptas uma postura um pouco mais ríspida, julgam-te "xenófobo". Um disparate. Quanto a mim, estou receptivo a que venham, a que por cá construam as suas vidas; exijo, porém, o mesmo respeito que demonstrámos ao acolhê-los, ao proporcionar-lhes todas as condições, em detrimento dos nacionais, inclusive.

      Se até a Noruega já age assim... Mas não só: a Dinamarca, a Suécia. Países tradicionalmente tolerantes estão a perceber o perigo que os seus nacionais correm. São vagas descontroladas. Há que pôr um travão. Eu não quero que o meu país se transforme num palco de medo, em que temos de estar permanentemente de vigília, sob pena de sofrermos um ataque vindo sabe-se lá de onde.

      A Arábia Saudita é um dos maiores parceiros dos EUA naquela região do globo. Uma monarquia absoluta, um regime hediondo. Produtor de petróleo, claro. Os interesses estão acima de quaisquer direitos humanos, pelo menos para as sucessivas administrações norte-americanas.

      A reciprocidade começa a ser justa, sim, e eu começo a rever a minha postura demasiado condescendente. Tudo tem um limite.

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    2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  11. Já muito foi escrito e sinceramente, não entendo porque é que uns é que têm que ser flexíveis e os outros não. E isso diz muito de um país...

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    1. Exacto. Não podemos condescender sempre, quando não condescendem connosco.

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